sexta-feira, 23 de outubro de 2009

LUCILIA CAVALCANTI: SÃO PAULO

Agora à noitinha, quando escolhia o texto desta quinta-feira (toda quinta é dia de Lucilia, em O “butecólico”), que – tenho certeza – enriquecerá tanto este blog quanto os outros postados anteriormente, precisei de uma sacudidela. O solavanco partiu de Minha Deise, quando me viu estático na frente da tela.

Perdi-me por inteiro quando fui tomado pelo texto, e atirado a uma cidade desconhecida, mas não tão suspeita. De fato, - sem sequer ter pisado por lá - me senti quase no quintal de casa, nessa – que nem sei se já era na ocasião dos relatos – a maior cidade da América Latina. Cidade dos tempos de outrora. América de gente como Lucilia Cavalcanti, uma obstinada.

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SÃO PAULO

Não te conheci, São Paulo, na época distante dos lampiões de gás, das serenatas, das cadeiras nas calçadas nas noites de verão, quando as pessoas dos bairros ainda consideravam uma grande família. As cadeiras nas calçadas, os homens discutindo política entre um gole de vinho, ou pinga e a fumaça de cigarros e charutos, as mulheres trocando receitas culinárias e de tricô e as crianças brincando de “pega-pega, de bola ou de “peteca”, sorrindo despreocupadas. Devia ser linda aquela época. Gostaria de ter conhecido lá, entretanto vim te conhecer na década de sessenta, quando já eras grande e confusa, mas ainda havia muito encanto em tuas ruas do centro e dos bairros. As pessoas ainda se cumprimentavam, ainda sorriam e se desculpavam se por acaso se esbarravam nas ruas, já bastante movimentadas. Lembro que levava meus filhos para passear no centro da cidade, onde tomávamos sorvetes e eles não dispensavam um lanche em uma boa pastelaria. Pasteis bons e confiáveis, feitos com esmero. As pessoas vestiam-se bem, as casas de chá eram bem frequentadas, com música ao vivo tocada por uma ou um pianista. As meninas e as mocinhas com vestidos da moda e bem confeccionados. Os meninos e os rapazes não usavam bermudões, nem camisetas coloridas como hoje. Os garotos e os rapazes usavam terninhos e gravatas borboleta. Era um luxo um passeio à tarde pela Rua Barão de Itapetininga e pela Praça Ramos de Azevedo em frente ao Mappin e ao Teatro Municipal. Já eras grande São Paulo e uma grande promessa em todos os sentidos. Agora, quarenta e nove anos depois, te vejo com outros olhos e com outros sentimentos. Vejo-te uma megalópolis cruel, fria e desumana. Os miseráveis se multiplicaram e já não podemos abrir a bolsa para dar-lhes uma moeda como antigamente. Ainda pior, já não conversamos ou acariciamos uma criança na rua, muito pelo contrário, temos medo dela. Que mundo é este em que uma criança na rua nos inspira terror, em vez de carinho? Cresceste São Paulo, evoluíste. Novas e belas construções, iluminação feérica no centro financeiro, Avenida Paulista, cartão postal da cidade belíssima. Restaurantes de auto padrão, casas de show cada vez maiores e sofisticadas, carrões cruzando as avenidas, metrô cortando o sub solo e transportando milhares de pessoas. És uma mega cidade. Os turistas te admiram e se encantam com o teu progresso. Grandes negócios são realizados periodicamente em tuas grandes feiras, monumentais feiras, dignas de países de primeiro mundo. O lazer é farto, farto e caro, com entretenimentos de alto luxo. Mas, São Paulo, vamos para as periferias. Lá são ruas escuras, esburacadas, favelas mal acabadas, com becos estreitos, esgoto a céu aberto e barracos caindo aos pedaços, crianças descalças garimpando o lixo, lixo que vem da megalópolis e de repente chegam os policiais à procura de bandidos. Distribuem pancadas, invadem barracos, empurram mulheres e crianças, levam homens presos, às vezes sem nenhuma culpa.

São Paulo dos grandes contrastes. Do belo e do horrível. Do rico, do pobre e do miserável. Dos bandidos, dos bandidos de gravata e dos bandidos políticos. São Paulo dos banqueiros, dos industriais, dos magnatas e dos trabalhadores espremidos no precário transporte urbano.

São Paulo dos grandes hospitais.
São Paulo dos hospitais públicos sem leito, sem médicos e sem remédios.
São Paulo dos grandes colégios.
São Paulo das escolas periférica sem teto e sem carteiras.
São Paulo das grandes mansões.
São Paulo dos moradores de rua
São Paulo de belos jardins.
São Paulo dos grandes lixões.
São Paulo, como pode dois mundos tão diferentes em uma mesma cidade?
São Paulo, por tudo isto, te amo, te odeio!
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Inté.

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